Chico Buarque cantando não sei quem.
Até meus 17 anos eu era uma pessoa. A partir de então me transformei em outra oposta ao que era. Eu era alegre. Praticava esportes. Fui goleiro do time de futebol de salão do colégio. Lateral esquerdo num time de futebol de campo. Pivô no time de handball da escola. Ia pro campinho de terra batida do bairro jogar bola com os meus vizinhos e voltava imundo pra casa com preguiça de tomar banho. Sempre fui tímido. Era goleiro por não ter coragem de jogar na linha; era pivô por não conseguir ser um jogador de meia no handball. Mas, no fundo, eu sempre queria ser o armador central, o atacante do time. Até os meus 17 anos isso não me incomodava. Fazia sucesso na escola entre as meninas e não pegava nada. Sempre me reprimindo, sempre. Como falei, o fato de me reprimir não me incomodava. Um dia, numa prova de química, fui o primeiro a terminar o teste. Levantei-me da cadeira e fui até a professora entregar o exame. Em seguida sai da sala e fui para o pátio do colégio. Alguns colegas me pediram cola. Não tive coragem de passar por medo de ser pego em flagrante. Após todos concluírem suas provas, a professora me chamou. "Leone, menino! Como é que tu faz uma prova desas!". Ela começou a puxar minha orelha. "Sabe quanto tu tirou?". "Não...", falei olhando pra baixo. "Dez! Rapaz tu tem que confiar em ti". A mesma professora um dia escolheu um aluno para representar o colégio em uma olimpíada de química. "Por que não o Leone?", perguntavam atônitos meus colegas de classe por eu não ter sido o escolhido. "Ele não confia em si...", ela respondeu.
A despeito de tudo isso, sempre tive uma grande força interna. Quando metia uma coisa na cabeça não tinha santo que me fizesse desistir. Aos 16 anos quis ir fazer o convênio em Belém. "Tu não vai para Belém de jeito nenhum!", falou minha mãe que anos depois confessou que só estava me testando. "Eu vou para Belém nem que eu tenha que morar de baixo da ponte!", respondi na época.
Cheguei a Belém. Convênio no Ideal, um dos melhores colégios do Estado do Pará. Acordava todo dia de manhã cedo; às vezes chegava atrasado, mas chegava. Encasquetei que eu tinha que ir para o CE Militar (naquele tempo os cursos eram divididos em CH, CB e CE: ciências humanas, biológicas e exatas). O CE Militar era a elite do Ideal. "Os loucos". Seis Professores de matemática, quatro de química e quatro de física. Aulas de manhã e a tarde. Simulados aos finais de semana. Os integrantes da turma pretendiam passar no ITA, IME, AFA, ESPECEX, e outras. Eu só queria Ciência da Computação na UFPA, o que por si só já era um grande desafio.
Era o ano de 1999. No mei0 do ano ela surgiu. Uma mulher, amiga dos meus companheiros de apartamento, veio estudar em Belém e veio morar conosco. Apaixonamos-nos. Dormíamos no mesmo quarto. Ela passou para o vestibular em São Paulo, eu em Belém. Ela foi embora e meu mundo caiu. Segundo minha psicóloga eu vivia numa bolha. Garoto de família, inteligente, sempre teve tudo. Quando passei pela minha primeira perda tudo desandou. É verdade, eu já tinha uma tendência latente para problemas psicológicos. Um primo meu perdeu a cabeça por causa de mulher. Meu pai é completamente dependente da minha mãe emocionalmente. Ambos fazem tratamento psiquiátrico. Meu primo está muito bem. Médico, casado, superou o trauma. Já meu pai...
Os dois anos seguintes, 2000 e 2001, foram de muita depressão. Eu ficava horas deitado pensando e sofrendo, consumindo-me. Para completar a história, conheci uma pessoa que me apresentou o mundo das trevas e seus encantos. Comecei a escrever, dar uma de artista. O cultivo pelo sofrimento passou a ser uma espécie de diferenciador das "pessoas comuns". Neste período os primeiros instintos megalomaníacos começaram a aparecer. A vontade de ser belo, de brilhar, algo que eu sempre tive, mas reprimira, começou a ser mais forte que minha conformação por não ser o que eu desejava. A carga negativa da perda da mulher amada foi se desenvolvendo num ciclo de retroalimentação. Meu corpo, lentamente, estava se transformando numa grande massa de energia negativa. Justo eu, que era tão alegre.
Em 2002 passei no concurso da Caixa Econômica Federal. Abandonei a faculdade e, 10 meses depois, aband0nei também o emprego depois de sofrer minha primeira crise. Voltei para Macapá. Passei o ano de 2003 às traças, sem eira nem beira. Em 2004 voltei para Belém. Este foi o ano de minha segunda grande paixão. Como um corredor de uma prova com bastão, a mulher amada mudou, mas o sentimento era o mesmo. Conheci o PSTU e as teorias das conspirações e o movimento para conquistar o mundo. "Despertei do meu sono dogmático", nas palavras de Kant. A vida passou a ter um sentido; a vida não tinha mais sentido sem um sentido para estarmos aqui. "Temos que fazer alguma coisa, porra!". Como sempre, mergulhei de cabeça. Drogas, movimento, mais drogas, excitação, viagens, álcool. Surtei. Desta vez "de cunforça". Atingi o auge da megalomania.
Hoje, estou tentando me livrar do sentimento de que sou o centro das atenções. Às vezes sinto como se estivesse nu na frente das pessoas. "Por que pra ti é tudo tão definitivo?". Esta frase, dita por uma mulher, é que está me fazendo sobreviver. Está me salvando. Coloquei de lado o sentimento de perda da mulher amada, mas continua sendo o que mais quero na vida. Sofro de coração partido, ainda sofro de coração partido, mas isso não me impede mais de levar minha vida. Uma mulher me levou às trevas, outra está me conduzindo à luz.
Li em algum lugar que a consciência só vem com amor. Hoje em dia, sei do meu grande potencial. Só tenho que decidir ainda se vou colocá-lo em prática ou não e, principalmente, estou aprendendo a reconhecer que não sou perfeito e estou procurando evitar a mania de perfeição. Tenho que aprender as qualidades da competitividade e saber competir, dialogar, interagir com as diferenças, negociar. O que mais quero hoje é ser auto-determinado, não importando tanto se vou ser grande ou não, mas, sim, auto-determinado, livre pra fazer o que eu quiser da minha vida. Se terei a mulher dos meus sonhos, não sei mais. Não sei até que ponto isso depende mim. Antes achava que a teria ou seria o fim. Procuro não determinar mais, mesmo correndo o risco de perdê-la. Foi uma questão de sobrevivência. Só sei que, às vezes, quando me pego triste, penso nela e tudo fica bem, ganha cor. Como disse o personagem principal do filme "O náufrago" quando soube que sua mulher pensava que ele tinha morrido e se casou com outro: "Tenho que seguir em frente. A maré me trouxe a vela e eu sai da ilha. Vamos ver o que a maré ainda pode me trazer".